Aplicação de Cide-Digital é um equívoco, dizem juristas e representantes do setor de telecom

Projeto de Lei 2358/20 cria tributo sobre empresas de tecnologia; proposta foi debatida nesta segunda, na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados (CCTCI)
Rodrigo Petry apresentando Consolidação de Dados - Foto: Divulgação
Rodrigo Petry apresentando Consolidação de Dados – Foto: Divulgação

O Projeto de Lei 2358/20, que institui a Cide-Digital, foi debatido nesta segunda, 20, na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados. Tanto especialistas em direito tributário, como representantes do setor de telecomunicações presentes à audiência consideraram a criação do imposto um equívoco.

“Por nenhum aspecto que se olhe, se justifica a criação desse tributo”, disse Sergio André Rocha, diretor vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF).

“Não é verdade que há um alinhamento com o que acontece na OCDE. Inclusive, OCDE trabalha para que países não adotem decisões unilaterais, então estamos indo na contramão do que a OCDE defende”, falou Rocha.

Ele questionou a comparação. “Por que países europeus se movimentaram fortemente na direção dos tributos digitais? Porque esses países adotaram há um século, desde 1928, a não cobrança de IR de empresas não residentes? O Brasil nunca seguiu isso. Então seria tentar resolver algo alinhado na OCDE que é um problema que não temos.”

O representante da ABDF Brasil disse ainda que o Brasil tem tributação sobre importação de serviços, lei de 2001, “que já incide sobre os mesmos fatos econômicos que se tenta tributar agora”.

Esse tributo, da maneira como está proposto, é hipercomplexo de forma que a autoridade fiscal terá dificuldade em administrar. “Traz problema grave de isonomia. O tributo incide sobre plataformas domésticas e não residentes, e a administração federal não tem como exercer poder fiscal sobre quem não está aqui”.

“Não se consegue cobrar os tributos que já existem. Não precisa criar um tributo novo”, concluiu Rocha.

Rodrigo Petry, coordenador do Grupo de Trabalho de Assuntos Tributários da Câmara Brasileira da Economia Digital (camara-e.net), concordou com ele. “É tudo um equívoco. Não faz sentido importar um tributo que foi criado em contexto totalmente diferente do nosso”, disse.

Petry lembrou que por estarem aqui estabelecidas, empresas estrangeiras pagam tributos. E os recortes digitais não condizem, estão enviezados. Design de interiores, por exemplo, é incluído como serviço digital. Só por aí já se percebe que não há consistência.”

Acima da média

O coordenador do camara-e.net disse que, para criar o tributo, também não dá para alegar que as empresas de tecnologia pagam menos impostos. “Ao contrário. Empresas do setor pagam 1,8% da receita bruta de impostos, enquanto a média das outras é de 0.9%”, falou, mostrando um quadro com o levantamento.

Raúl Echeberría, diretor executivo da Associação Latino-Americana de Internet (ALAI), reforçou que a carga tributária do setor é alta. “Empresas de economia digital recolhem mais impostos que de outros setores. A criação de CIDE-Digital é, portanto, incompatível com nosso sistema tributário.”

Retrocesso

Echeberría também concordou com Petry sobre o mundo ainda não ter definido direito o que é digital e o que não é, e disse que o Cide-Digital “seria um retrocesso”.

“Desestimularia o investimento e a inovação. O Brasil está mal cotado mundialmente no índice global de competitividade. É nisso que seria bom investir, em medidas que o ajudem a crescer. Estão  indo na direção contrária”, falou o diretor da ALAI.

“Com essa proposta, teremos mais um impacto negativo sobre o setor”, concordou Italo Nogueira, presidente da Federação das Associações das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação (Assespro).

Segundo Echeberría, quase 140 países trabalham juntos para ajeitar um sistema tributário. “Apenas uma negociação internacional baseada no bom senso pode ser uma boa solução.”

“Além do mais, esse novo imposto pode gerar retaliações de parceiros comerciais, especialmente os EUA”, falou Petry.

A produtividade e a geração de empregos do setor foram os pontos abordados por Daniel Stivelberg, encarregado de proteção de dados e gerente de relações governamentais da Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) e de Tecnologias Digitais (Brasscom) para também defender a não criação do Cide-Digital.

“O macrosetor de TI produziu 7% do PIB e empregou 1,6 milhão de trabalhadores. A própria Receita Federal já declarou que as empresas de internet possuem média de arrecadação superior à média nacional. Então merecem uma política tributária indutora de fixação de valor no país”, falou Stivelberg.

“Empresas globais de internet pagam 4,85% de impostos, e as nacionais 1,27%, segundo estudo da própria Receita Federal. Só isso já é um elemento contrário a esse PL”, continuou.

Inconstitucionalidade

Segundo Stivelberg, a Cide-Digital é também inconstitucional.  De acordo com ele, a criação do tributo demonstra violação do princípio de isonomia; e bitributação e violação do princípio da capacidade contributiva.

“A Brasscom prevê investimentos de 413 bilhões em tecnologias de transformação digital, no Brasil, de 2021 a 2024. Portanto, é necessário evitar a importação de problemas que não existem”, finalizou, em seu discurso.

Faturamento

André Mendes Moreira, consultor da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), apontou equívocos da Cide-Digital em questões de valores a tributar.

“O PL em debate tem justificativa bem feita, porém endereça esse problema da justa divisão da arrecadação tributária no mundo de forma equivocada, para não dizer ultrapassada”, disse.

“O projeto em questão estipula valor mínimo de faturamento global, a partir do qual empresas seriam contribuintes da Cide-Digital, de 3 bilhões de reais. Pois bem, a OCDE trabalha atualmente sob um estudo Pilar 1, no qual se pensa em um redesenho sobre a arrecadação tributária, de forma que se tribute apenas acima de 20 bilhões de euros no mundo. Ou seja, o limite que se quer estabelecer no Brasil é 50 vezes menor”, falou Moreira.

“Um dos equívocos é a base de cálculo utilizada. Países da Europa criaram [o tributo] para mitigar perda de IR em decorrência de realocações societárias feitas por empresa de tech. Essa não é uma realidade. Tributar receita foi a saída que a Europa encontrou para mitigar erosão. O que se discute é a tributação do lucro excedente, para distribuição mais justa entre os países.”

“Então se erra ao estabelecer 3 de bilhões reais, se erra ao tributar receita, não lucro residual. E gera ainda um terceiro equívoco, que é penalizar o contribuinte”, continuou.

“Tem que ter outro foco. A parcela da receita das big techs foge à tributação do Brasil, e não vai ser alcançada por essa tributação. Como alcançá-la? Não é uma resposta fácil. Até que ponto o Brasil avança sobre contratos firmados no exterior cuja única conexão é o usuário brasileiro?”, questionou.

De acordo com Moreira, “todo esse PL é um tiro mortal no desenvolvimento tecnológico brasileiro” e merece o arquivamento.

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José Norberto Flesch

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